quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Leia o Parecer pelo Tombamento do Encontro das Águas e Entorno




Processo de tombamento nº 1599-T-10
Relator: Conselheiro Eduardo Góes Neves.

No início da colonização européia, em 1542, uma pequena expedição exploradora partiu dos Andes Equatorianos e desceu os rios Napo e Amazonas até sua foz, no Oceano Atlântico. A expedição, chefiada por Francisco de Orellana, teve um cronista, frei Gaspar de Carvajal, que nos deixou o primeiro relato escrito sobre os povos indígenas da bacia Amazônica. Desde sua redescoberta, no final do século XIX, o relato de Carvajal tem servido como uma fonte preciosa, embora às vezes vaga, sobre os modos de vida desses povos nos períodos que antecederam a colonização européia.

O relato de Carvajal nos trás também o primeiro texto escrito sobre o encontro dos rios Negro e Solimões, também conhecido como “encontro das águas”. De acordo com Carvajal “proseguiendo nuestro viaje, vimos una boca de otro rio grande a la mano siniestra, que entraba en el que nosotros navegávamos, el água del cual era negra como tinta,y por esto le pusimos el nombre del Río Negro, el cual corría tanto y con tanta ferocidad que en más de veinte leguas hacía raya en el agua sin revolver la una con la otra.”

O relato de Carvajal é também importante, porque ele nos fala de uma Amazônia diferente da qual o senso comum está acostumado: há no texto referências a grandes aldeias densamente ocupadas, a chefes supremos capazes de liderar flotilhas com centenas de guerreiros, a estradas permitindo o comércio de longa distância, à construção de paliçadas defensivas em torno de alguns assentamentos, a vasos cerâmicos tão belos como os de Málaga. A Amazônia do senso comum, por outro lado, é um grande vazio, um lugar da natureza por excelência, uma floresta pristina, às vezes inóspita, que espera pelo momento de sua ocupação racional.

Durante boa parte do século XX os relatos de Carvajal e de outros cronistas europeus dos séculos XVI e XVII foram rejeitados por arqueólogos e antropólogos interessados em entender a história da ocupação da Amazônia. Na raiz dessa rejeição estava a concepção de que o meio ambiente da floresta equatorial teria uma série de limitações físicas – seja na baixa fertilidade dos solos, seja pouca disponibilidade de proteína de origem animal – para sustentar populações sedentárias e grandes adensamentos demográficos. Conseqüentemente, tais relatos foram interpretados como construções fantasiosas, cujo objetivo era superestimar as riquezas amazônicas a fim de obter mais recursos que justificassem a colonização e exploração da região.

Pesquisas realizadas nos últimos anos têm levado a uma revisão dessa perspectiva e mostrado que os relatos dos primeiros cronistas não estavam longe de trazer um registro fiel dos modos de vida nativos da Amazônia nos séculos XVI e XVII DC. Nesse processo de revisão a arqueologia tem tido um papel importante: de toda a bacia Amazônica, e não apenas nas áreas adjacentes aos grandes rios, têm surgido evidências que mostram sinais claros de que a região foi densamente ocupada nos milênios que antecederam a chegada dos europeus ao novo mundo. Dentre esses sinais há: a construção de aterros geométricos artificiais, conhecidos como geoglifos, no Acre, Amazonas e Rondônia; a formação de férteis solos antrópicos conhecidos como terras pretas em diferentes locais no Amazonas, Pará, Rondônia, Mato Grosso e Amapá; a construção de aterros artificiais, os “tesos”, na ilha de Marajó, de sambaquis no Maranhão, Pará e Rondônia; de alinhamentos de pedra no Amapá; da ocupação de grandes aldeias conectadas por estradas lineares no alto Xingu.

Em muitos desses contextos, além do mais, tais estruturas são acompanhada por objetos de cerâmica e pedra de alta qualidade estética. Esse movimento de redescoberta do passado Amazônico, a par de possibilitar um entendimento mais completo da história da região, traz também uma importante contribuição conceitual. Ele nos mostra, a partir das evidências empíricas, que a noção de natureza virgem ou intocada é incompleta para o bom entendimento da Amazônia e toda a sua complexidade ambiental. Em outras palavras, é cada vez mais claro que o estudo da história natural dos biomas amazônicos requer também o estudo de sua história cultural.Fazer referência, no entanto, à “história cultural de biomas” é, em outras palavras, referir-se ao conceito de “paisagem”, por que o que são paisagens se não o meio físico transformado continuamente pela ação humana, sempre culturalmente mediada, ao longo dos tempos?

O uso do conceito de paisagem e suas implicações para o estabelecimento de critérios de proteção ao patrimônio cultural amazônico serão retomados em breve. Antes de seguir adiante, gostaria de voltar ao relato de Carvajal e discutir brevemente outro aspecto relevante para o embasamento deste parecer. Esse aspecto diz respeito à aparente contradição entre o conteúdo de sua narrativa e o quadro sobre a ocupação humana construído pela arqueologia e antropologia amazônicas no século transcorrido desde o final do século XIX ao final do século XX.

A conciliação entre perspectivas tão díspares deve ser feita à luz da história colonial da Amazônia e do quadro histórico particular da inserção das ciências nesse processo. Como em outras áreas “periféricas” do planeta, foi no final do século XIX que os primeiros antropólogos iniciaram suas atividades de campo na Amazônia. Ora, esta foi também a época do apogeu do ciclo da borracha, ciclo esse, é sabido, baseado em um modo de exploração brutal de mão de obra indígena, descrito por Sir Riger Casement, e apropriadamente denominado de “economia do terror” pelo antropólogo inglês Michael Taussig. As sociedades indígenas estudadas por esses pioneiros da antropologia como, por exemplo, Von den Steinen, Koch-Grünberg, Nimuendaju e Roquete-Pinto, sofriam os efeitos diretos e indiretos do ciclo da borracha e, por isso, tinham modos de vida bastante diferentes dos descritos pelos cronistas do início do período colonial.

O ciclo da borracha, adicionalmente, foi o clímax de um processo de diminuição demográfica iniciado já no século XVI, conseqüência da propagação de doenças infecciosas, guerra e escravidão. Isso explica por que, embora muitas das principais terras indígenas na Amazônia contemporânea se encontrem localizadas longe do rio Amazonas - no alto Xingu, alto Rio Negro, em Roraima, na fronteira com as Guianas ou no Acre –, a arqueologia das margens desse rio seja riquíssima, com vestígios que remontam até o início do período colonial: tais áreas ribeirinhas foram esvaziadas de seus ocupantes indígenas nos séculos XVI e XVII.

A diminuição demográfica que se sucedeu ao início da colonização européia da Amazônia pode, paradoxalmente, ter levado à expansão da floresta sobre áreas anteriormente ocupadas. Esse foi, aparentemente, o caso da baía de Guanabara, onde o historiador Warren Dean, em seu clássico “A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira”, relata, a partir de fontes do século XVI, como a vegetação dessa região parecia ser composta por áreas de capoeira ou mata secundária no século XVI. Resumindo o argumento, parece certo que áreas atualmente cobertas por florestas aparentemente primárias na Amazônia resultam também de uma história de ocupação humana que em muitos casos remonta à história pré-colonial da região. Tais florestas são, portanto, paisagens, pois sua história deve ser entendida a partir dos componentes naturais e culturais que as compõem. A essa constatação deve-se se acrescentar que a presença de solos antrópicos e plantas economicamente ou culturalmente importantes confere hoje a esses locais relevância material e simbólica.

O processo em questão propõe o tombamento do local de confluência dos rios Negro e Solimões, bem como parte de seu entorno, nos municípios de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea, no Estado do Amazonas. Esse local, doravante aqui referido como “encontro das águas”, reúne, por suas características naturais e culturais, atributos que o qualificam, por excelência como uma paisagem passível de reconhecimento como patrimônio cultural de alta relevância, tanto de acordo com os conceitos previamente, e de maneira breve, aqui alinhavados, como pela importância simbólica e concreta que tem para as sociedades manauara, amazonense e brasileira contemporâneas.

Dentro do quadro de grande diversidade ecológica e geográfica da Amazônia, a região do encontro das águas pode ser vista como um microcosmo: o rio Solimões, na tipologia clássica dos rios amazônicos proposta por Alfred Russel Wallace ainda no século XIX, é um rio de águas brancas, barrento, cujas cheias anuais fertilizam, com sedimentos recentes de origem Andina, antigos meandros abandonados que formam planícies de inundação de tamanho variável, restingas e praias, em complexos conhecidos como “várzeas”.
A fertilização regular das várzeas cria micro ambientes ricos em nutrientes o que favorece o desenvolvimento de uma complexa cadeia alimentar composta por peixes, crustáceos, aves, répteis e mamíferos. Além disso, as planícies aluviais são também compostas por um mosaico de tipos de vegetação que incluem igapós, aningais e áreas de mata que abrigam grande biodiversidade. Desde os trabalhos do geógrafo brasileiro Hilgard Sternberg, professor emérito da Universidade da Califórnia em Berkeley, sintetizados em seu clássico “A água e o Homem na Várzea do Careiro”, de 1956, sabe-se que os ambientes de água branca são extremamente dinâmicos devido à intensidade do fluxo das correntezas do rio Solimões. A ilha do Careiro, por sinal, fica próxima aos polígonos propostos para o tombamento.
O rio Negro, como o próprio nome diz, é um rio de águas pretas, cujas cabeceiras drenam os terrenos antigos do planalto das Guianas. Ao contrário do Solimões, que constrói, destrói e reconstrói constantemente suas margens, o Negro é um rio menos dinâmico, com uma carga sedimentar significativamente mais baixa. A coloração escura de suas águas é devido à diluição, na água da chuva, dos compostos secundários das folhas e cascas das árvores que ocupam suas áreas de captação. Esse tipo de vegetação, que cresce sobre os solos arenosos da bacia do rio Negro, é conhecido como campinarana ou caatinga amazônica. Apesar de ter sediado, em seu médio curso, a primeira capital da Província de São José do Rio Negro, a cidade de Barcelos, ainda no início do século XVIII, o rio Negro é, com exceção da cidade de Manaus, um rio hoje de ocupação essencialmente cabocla e indígena.

Para muitos desses povos, o encontro das águas é referido como uma das “casas de transformação” pelas quais passou a sucuri ancestral em sua viagem de criação do mundo.
No encontro das águas, o regime hídrico é semelhante para os rios Negro e Solimões: dos meses de janeiro a julho, aproximadamente, os rios estão cheios, as praias e várzeas desaparecem e a pesca fica mais difícil. De agosto a dezembro, o verão, os rios vazam, praias e várzeas aparecem e a pesca torna-se abundante. É também durante esse período que afloram alguns dos pedrais que permanecem submersos durante o inverno tanto no Solimões como no Negro. O relevo é variável: na margem esquerda do rio Negro e na margem esquerda do rio Amazonas ocorrem escarpas de altura variável onde estão geralmente implantados sítios arqueológicos, na margem direita do rio Negro, em ambas as margens do Solimões e na margem direita do Amazonas os terrenos são mais baixos e sujeitos a alagações, embora sítios arqueológicos tenham também sido ali registrados.
Mais que, portanto, o encontro de dois rios, o encontro das águas é um encontro de dois biomas distintos, síntese da biodiversidade amazônica. Há na região outros notáveis encontros de rios, como é o caso do encontro do Amazonas e do Tapajós em Santarém.

O Rio Negro, no entanto, é o único rio de águas pretas de dimensões continentais na bacia Amazônica, já que tem suas nascentes na Colômbia e tangencia também a Venezuela antes de entrar no território brasileiro, em Cucuí, a montante de São Gabriel da Cachoeira. O encontro das águas é, desse modo, único, não havendo equivalente algum em toda a Amazônia e em qualquer outro local do planeta, já que não há no mundo bacia hidrográfica comparável em escala à amazônica.

A importância simbólica do encontro das águas é visível em alguns emblemas contemporâneos da sociedade amazonense: com referências nos brasões do Estado do Amazonas, da Universidade Federal do Amazonas, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e do Município de Manaus. No Largo de São Sebastião, em frente ao Teatro Amzonas, a decoração do piso, feita em pedra portuguesa, imita o padrão de encontro das águas do Solimões e Negro, formando um mosaico em preto e branco depois utilizado para decorar o piso da orla da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

A intersecção entre a importância material e simbólica do encontro das águas para a sociedade manauara contemporânea pode ser exemplificada por um tipo de peixe comum em suas águas, de grande importância econômica e cultural: o jaraqui. Os jaraquis, que pertencem à ordem dos Characiformes são os peixes mais populares da região de Manaus, sendo considerados símbolos da cidade. Por serem capturados em grandes cardumes são peixes baratos, de grande apelo popular, vendidos aos centos nas épocas de safra (final da cheia e vazante/seca).

No início da enchente, época de chuvas, os cardumes de jaraquis se reúnem em locais de encontros de águas (sempre envolvendo um rio de água branca/barrenta e outro de água clara ou preta) para desovar. Os ovos rapidamente eclodem e as larvas são carreadas pela enchente para os lagos e planícies inundáveis de rios de águas brancas, locais altamente produtivos, onde a água invade extensos terrenos e disponibiliza uma quantidade enorme de matéria orgânica e microorganismos que são consumidos pelos peixes jovens. Quando os peixes crescem, após cerca de dois ou três meses, os cardumes de jovens das duas espécies se reúnem e migram rio acima para os afluentes de águas pretas ou claras (no caso do encontro das águas de Manaus, das várzeas do rio Solimões para o rio Negro).

Nesses afluentes os jaraquis crescem se alimentando de algas e detritos encontrados nas florestas alagadas. No segundo ano de vida, já adultos e prontos para se reproduzir, esses peixes retornam ao encontro das águas para a desova. Além da importância econômica, nutricional e cultural dos jaraquis para a população de Manaus e da Amazônia Central, esses peixes são verdadeiros ícones do encontro das águas: o padrão de coloração da cauda, formado por faixas amareladas e escuras alternadas, remete imediatamente às cores dos rios Negro e Solimões.
Atualmente, a visitação ao encontro das águas é uma das atividades mais importantes no turismo em Manaus. Tais visitas são feitas em passeios diários e envolvem uma mão-de-obra permanente que inclui guias, barqueiros, além de pequenos restaurantes localizados em seu entorno.

A cidade de Manaus tem crescido em um ritmo vertiginoso e desordenado nos últimos anos e um dos eixos desse crescimento tem sido justamente a região do entorno do encontro das águas, nas margens esquerdas dos rios Negro e Amazonas. O tombamento proposto, além de permitir a proteção física do entorno do encontro das águas, poderá de algum modo exercer algum papel no ordenamento desse processo de crescimento.

A construção de uma ponte sobre o rio Negro, já quase concluída, e o projeto de construção de outra ponte atravessando o rio Solimões próximo à cidade de Manacapuru causarão sem dúvida um imenso impacto ao patrimônio arqueológico da área de confluência dos rios Negro e Solimões, onde dezenas de sítios já foram identificados, tendo sido objeto de estudos por estudantes brasileiros e estrangeiros, em, até o momento, 4 teses de doutorado e 12 dissertações de mestrado, sem contar as em andamento.

Na cidade de Manaus, os exemplos de destruição de sítios são inúmeros e os casos recentes incluem os sítios Nova Cidade, Praça D. Pedro e Japiim. É de se esperar que o mesmo destino não aguarde os sítios da área do encontro das águas, já parcialmente impactados pela construção do Porto das Lages.

Em suma, espero ter brevemente demonstrado as relevâncias histórica, cultural, ecológica, econômica e geológica do fenômeno do encontro das águas. Por todas essas razões, o considero paisagem repleta de fundamentais significados locais e nacionais, o que justifica sua proteção pelo Estado brasileiro.

Antes de concluir, gostaria de fazer uma última observação que diz respeito ao objeto do tombamento. Parece-me mais adequado que o tombamento proposto seja o da “área de entorno do encontro das águas” e não do próprio encontro, dada a natureza dinâmica que tem esse fenômeno hidrológico. Se realizado dessa forma, o tombamento permitirá ao menos o desenvolvimento de mecanismos de proteção física da área do entorno, da vegetação e dos sítios arqueológicos nela presentes. É também importante a articulação entre o IPHAN, Prefeituras Municipais de Iranduba, Manaus e Careiro da Várzea, SUFRAMA e Superintendência da Região Metropolitana de Manaus para a boa gestão da área tombada.

Assim, proponho que seja aceito o polígono apresentado às folhas 59, 60 e 61 do processo de instrução. Por todas as razões acima citadas, emito um parecer favorável ao tombamento das áreas em questão no Livro do Tombo Patrimônio Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

Eduardo Góes Neves - Presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira

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